terça-feira, abril 23, 2002
morning...
just started reading Nick Cave's "And The Ass Saw the Angel"....
it won't be an easy one, since the writing is a baroque english :) but it is beautifully written...
i guess nothing else could be expected from him....
finished reading Dagerman's "A Ilha dos Condenados" last night....
its a very uncomfortable book... it shows all things hidden in most of us... all things that we hate about us, things that even when we know they exist in us, we make our most to forget about them... all the fears, all the failures, all the bad, the rotten, the traumas....
"Talvez possamos comparar o ser humano a uma banheira de faiança branca: durante a infância e a primeira juventude, a banheira enche-se de uma água clara e fresca, que sussurra risonha; depois a água fica morna, cada vez mais quente, é uma água destinada à lavagem das acções, dos pensamentos, das sensações, condenada a perder a sua pureza sem com isso poder ser suja de qualquer maneira, uma água destinada a ser despejada quando quem nela se banha já não tiver forças para continuar a segregar porcaria. Se o ser humano é esta banheira, chega um momento da vida em que uma mão desconhecida tira o tampão do fundo e em que a água, de novo fria, escorre com a sua porcaria e a sua pureza; o silvo da morte que sai do cano a princípio enche de medo o ser humano, mas este rapidamente se resigna e por fim só deseja que a mão desconhecida que abriu o tampão, limpe depois com uma escova as camadas de sujidade que ficarem dos lados da banheira. Mas com um triste gemido a última água turva é sorvida, também ela, pelo buraco negro, a banheira está vazia e fica silenciosa, está morta e a casa de banho envolta em sombras. Com a porta aferrolhada pelo lado de fora, a casa de banho está fechada para toda a eternidade, nunca mais ninguém ali tomará banho."
Stig Dagerman in "A Ilha dos Condenados"
"E eis-nos de novo sós, mas a solidão é muito pior do que da vez anterior, o espaço não canta de solidão, o espaço não canta seja o que for, o espaço chove, neva, venta - mas isso nada nos diz. Estamos sozinhos de uma maneira acanhada, inestética e pois que seja como for não há salvação (admitindo que escapar à solidão seja salvarmo-nos, não é de admirar que ansiemos pelo grande espaço com a sua música diabólica mas sublime, com o seu isolamento implcável mas higiénico, com a sua ausência total de vida, sem dúvida, mas ao mesmo tempo com uma ausência igualmente absoluta de toda a obrigação de buscar contactos, de toda a necessidade de sorrir quando queremos chorar, de acariciar quando queremos arranhar, de procurar amigos quando acabamos justamente de descobrir que o mundo está cheio de inimigos.
Aspiramos aos instantes de completo abandono, aos instantes de solidão brutal e sublime com toda a intensidade da sua esperança e todo o ardor dos seus olhos, partilhamos um segredo perigoso, fomos iniciados no modo de emprego de um veneno temível chamado solidão e, como morfinómanos, dividimos doravante a vida em dois períodos: a embriaguez e a recuperação. [...]"
Stig Dagerman in "A Ilha dos Condenados"
[...]
- A única novidade que me interessa é o nosso futuro comum, disse Françoise. O que é que queres? Sou feliz assim! O resto é contigo.
- Oh! Não te censuro, disse Pierre; pelo contrário, acho-te muito mais pura do que eu. Não há nada que soe a falso na tua vida.
- É porque tu, pelo teu lado, não dás tanta importância à tua vida em si própria. É o teu trabalho que conta, disse Françoise.
- É verdade, disse Pierre; mordeu uma unha com um ar perplexo. Para mim, exceptuadas as minhas relações contigo, tudo é frivolidade e desperdício.
Continuava a trincar a mão; só ficaria satisfeito quando o sangue aparecesse.
- Mas quando tiver liquidado a Canzetti, estará tudo acabado.
- Isso é o que tu dizes, disse Françoise.
- Hei-de prová-lo, disse Pierre.
- Não acho que a Canzetti seja uma rapariga interessada, disse Françoise.
- Não; não é tanto para ter papéis; só que me toma por um grande homem e imagina que o génio lhe vai subir do sexo para o cérebro.
- Já se tem visto, disse Françoise, rindo.
- Esse género de histórias deixou de me divertir, disse Pierre. Ainda se eu fosse um grande sensual, mas nem sequer essa desculpa tenho. Olhou para Françoise com um ar confuso. A verdade é que gosto muito dos começos. Não consegues perceber isso?
- Talvez, disse Françoise, mas a mim não me interessa uma aventura sem amanhã.
- Não? Perguntou Pierre.
- Não, disse ela, é mais forte do que eu: sou uma mulher fiel.
- Não se pode falar de fidelidade ou de infidelidade entre nós, disse Pierre; puxou Françoise para si. Tu e eu somos um só; bem sabes que é verdade, que não é possível definir-se um de nós sem o outro.
[...]
Simone de Beauvoir in "A Convidada"
salamandrine 10:12
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